Memorial apresentado à professora Tamar Rabelo – Programa (GESTAR II) Gestão da Aprendizagem Escolar
No espelho da vida, o reflexo da alma
“Viver é seguir um fio de vida tramado com outros muitos fios simultâneos que se tornam ‘visíveis' nas ressonâncias e nos interstícios de cada trajetória.”
(KREMER. 2003, p.221).
A minha trajetória cultural e literária é uma constante ascendência. Primeiro porque sou uma leitora assídua e em minhas veias corre o sangue de uma pessoa que ama a literatura, segundo, porque estou preocupada em aumentar o nível cultural do ambiente em que vivo e, principalmente, em conduzir os meus alunos ao maravilhoso caminho da leitura.
Ler é dar sentido ao mundo, ler é estar no mundo, e desde que tive meu primeiro contato com os livros, adentrei-me no universo da leitura. É como uma viagem, com partidas e chegadas, embarques e desembarques, atropelos, sonhos, magias, encontros, desencontros, caminhos e descaminhos. Por meio deste Memorial farei novamente o percurso e abrirei passagem para que você também possa entrar na intimidade de minha intimidade com a leitura.
Sob o pôr-do-sol amarelado na retina de minha memória, guardo imagens do tempo em que, ainda criança, de uma minúscula janela de madeira no fundo da velha igreja onde funcionava a pequena escola em que fui alfabetizada, contemplava mulheres de pés descalços, com latas d’água na cabeça e com olhos de desencanto nos estreitos caminhos que percorriam. Em meio aos meus pensamentos, desejava, no íntimo do meu ser, não me tornar tão infeliz quanto elas.
Meu pai sempre foi ausente e quem me acompanhou em minha vida escolar foi minha mãe que dava o duro de sol a sol para nos oferecer uma vida digna. Ela nos falava: “- A escola é o caminho mais curto para quem quer ter sucesso na vida.” Era perceptível o seu desejo de nos ver encaminhados na vida, por isso sua mais nobre missão era fazer com que todos freqüentassem a escola. E sempre repetia: “- Se não quiser ter uma vida dura como a minha, precisa estudar muito.” Essa voz me acompanhou durante um longo período de minha vida.
Com os olhos voltados para aquelas mulheres, deparei com a professora batendo uma enorme régua de madeira em minha carteira, quase berrando, me dizendo que a aula não era lá fora. Como castigo porque estava distraída, deu-me um livro para que eu lesse. Todos na classe riram e fizeram piadinhas, porque era uma missão muito difícil. Ler naquela escola era o maior castigo que um aluno poderia receber. Se não conseguisse, ficaria sem recreio uma semana. Não me importei, a aula era chata, o recreio era chato, a professora era chata, tudo era chato, estava cansada de tanto tédio, já não suportava mais. Livros eram preciosidades e quem podia manuseá-los eram somente as professoras, não existia biblioteca, ficavam em caixotes de madeira, por isso cheiravam a mofo.
A professora estendeu o braço com um livro na mão. Lancei um tímido olhar para livro e logo percebi que era velho e amarelado, sem capa e cheio de orelhas. Mesmo assim fiquei alegre, pois nunca havia tido a oportunidade de pegar um livro, manuseá-lo. Sempre era a professora que lia para nós. Não tive medo de não dar conta, nem me importei. A professora era severa, brava e não disse muitas palavras, apenas que era para ler o livro.
Naquele momento, meus olhos se fixaram naquelas páginas e a leitura fluía naturalmente era um livro de Contos de Fadas, e num instante já estava envolvida com as cores dos sonhos da fantasia. Tudo se tornou mágico e encantado. Saboreava cada palavra, que misturava ao mundo em fórmulas e cores, perdi-me nos limites dos meus desejos e prazeres.
Cada ser está marcado no fundo de seu eu, e ali construí o meu mundo, avistei o invisível. No entanto, lá fora o mundo continuava medonho, mas sabia que agora eu tinha meu passaporte e poderia viajar sempre que quisesse. Podia olhar para aquelas mulheres em meio a poeira e imaginá-las dançando no casamento de Cinderela. Bastava pegar o livro e deixar a imaginação me levar. Pela primeira vez me senti gente dentro do mundo e o mundo dentro de mim. Ler era como ouvir o vento, quando tudo se torna possível, e até hoje vivo a transpor mundos e superar barreiras.
Por ter me acontecido isso, e carregar esta experiência de vida, tirando a parte da imposição e do castigo, sempre acreditei que o melhor caminho para despertar o gosto pela leitura é por meio dos Contos de Fadas. Defendo essa tese. Tornei-me uma estudiosa sobre o assunto.
Abrem-se os livros, abrem-se as mentes, abrem-se os horizontes e foi assim que prossegui na trajetória. Sempre vivi em ambientes escassos de livros. Na adolescência, estudei em escolas precárias, e tive professores que tentavam a qualquer custo matar meu gosto e prazer pela leitura. Durante o Ensino Fundamental não tenho lembranças de nenhuma professora que tenha estimulado a leitura. Guardo traumas profundos de práticas pedagógicas que quero apagar definitivamente de minha memória literária.
Porém, não me deixei cegar pela pálida luz do não saber, do não conhecer, pois meus sonhos seguiam distantes. Havia um mundo para ser lido, era um campo tão fecundo e havia uma infinidade de livros para serem lidos, degustados e saboreados.
Quando li o livro Alice no País das Maravilhas, de Levis Carroll - quanta imaginação - senti-me a própria Alice, já que assim como ela vivia entediada da vida. Vi esse livro na casa de uma amiga e lhe pedi emprestado para ler. O livro vivia de mão em mão, ninguém havia lido. Fui para casa, tranquei-me no quarto, abri o livro e penetrei no mundo das palavras, tive uma decepção: em vez de ter uma recepção calorosa, as palavras estavam mudas, como no dicionário. Havia um bom tempo que não lia. Não tive uma boa recepção, era desprezo total. Mesmo assim, não desisti, li e não entendi nada, reli, precisava me adentrar no mundo de Alice. Queria fugir, tinha medo de não conseguir mais, havia tempo que não lia... Mas quando estava quase desistindo, Alice me chamou. Ela estava lá com a chave na mão e me convidou para entrar. Foi uma viagem fantástica e quando retornei à realidade o mundo estava menos cinzento.
Depois que Alice abriu essa porta, muitas outras se abriram. Meu Pé de Laranja Lima, O Pequeno Príncipe, A Ilha do Tesouro, Um Lugar ao Sol e muitos e muitos outros. Continuei a fazer o percurso, descortinei horizontes. Há sempre algo novo para ser apreciado. Ler é incorporar significados, transformar-se, alçar vôos cada vez mais altos, no entanto, é também o desafio de entender e conhecer a nós mesmos e o nosso entorno.
Cheguei à fase adulta e é lamentável dizer que, durante o período em que cursei o Ensino Médio, por mais que vasculho minha mente, não consigo encontrar nenhum registro de um professor por quem pude nutrir afeto ou admiração, com todo o respeito que a profissão exige. Não estou sendo pessimista. Infelizmente só há resquícios de velhas práticas, de professores autoritários que não viam o aluno como um ser dotado de sentimentos. A leitura de livros nesse período, o fiz por iniciativa própria. Costumava freqüentar a biblioteca da escola, mas não podia levar o livro para ler em casa, era um local apertado e a bibliotecária era uma senhora que estava há 30 anos na prática do magistério e sem função aguardava a aposentadoria, então, colocaram-na ali. Era amarga e infeliz, sentia-se incomodada quando um aluno ia até a biblioteca. Ficava ali olhando por cima de suas grossas e embaçadas lentes. Ah, como seu mundo era limitado. Neste período, eu costumava ler Graciliano Ramos e Castro Alves, Machado de Assis e Drummond: tornaram-se meus autores prediletos, também não havia muita opção. A biblioteca era muito limitada.
Não havia nada que eu pudesse odiar mais que as aulas de Língua Portuguesa e Geografia, pois as professoras repetiam o mesmo ritual o ano inteiro. Na aula de Geografia, a professora entreva na sala, sentava-se a uma mesa que ficava em um nível superior da sala, abria um velho livro e pedia que uma aluna escrevesse o texto na lousa. Não se dava nem o trabalho de ela mesma escrever. Todos copiavam em silêncio, os textos eram enormes e passava todas as aulas copiando, depois decorava para responder na prova.
Na disciplina de Português não era muito diferente. Em todas as aulas a professora pedia para fazer uma redação, com tema livre. Escrevíamos em silêncio, depois entregávamos para ela que devolvia no dia seguinte toda marcada de vermelho e, assim que saíamos da sala, embolávamos o papel e o jogávamos no lixo. Não me lembro de nunca ter compartilhado um momento de leitura com ela.
Entrei para Faculdade de Letras e continuei a viagem. A escolha se deu por falta de opção. Mas, com o tempo passei a gostar do curso. Cada momento era um convite a desvendar segredos, com tramas e tessituras: a vida pedia leituras. As pessoas são espelhos que refletem pelo seu conteúdo, pelo que já aprenderam a ver... Ah, livros!
Foi um momento fantástico em minha vida. Os professores eram maravilhosos, amavam a arte de ensinar. Tive uma professora de Literatura que falava com a alma. Ela me proporcionou um verdadeiro encontro com a Literatura. Em pouco tempo consegui superar traumas e suprir muito do que me havia faltado na formação secundária. Tornei-me uma leitora crítica, pois o ensino superior me possibilitou alçar vôos cada vez mais altos. Foi neste período que me vi nascer como educadora. Dediquei-me de corpo e alma, dei o máximo de mim, tinha sede do saber. As leituras que marcaram meu ensino superior foram os teóricos. Tive encontros inesquecíveis com Paulo Freire, Vygotsky e Piaget.
Nessa altura da viagem, a bagagem pode estar cheia, mas o conhecimento é tão leve, é como pluma. Na bagagem posso contar com Drummond, Castro Alves, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guilherme de Almeida, Dante Alighieri, William Shakespeare, Victor Hugo, José de Alencar, Nelson Rodrigues, Casimiro de Abreu, Poe, José Lins do Rego, Aníbal Machado, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Fernando Pessoa, Piaget, Paulo Freire, Edgar Morin, Camões, Platão, Vygotsky, Sócrates, Rubem Alves e tantos outros que têm lugar garantido dentro da mala.
Nesse trajeto, muitas coisas aconteceram. As sementes germinaram e as histórias brotaram. Abriram caminhos, fizeram ninho em minha imaginação. Os livros me ajudaram a ver o mundo em suas múltiplas linguagens. No universo mágico da Literatura, compreendemos a vida por meio das leituras. Tudo é mistério neste universo de leitor, e só assim pude viajar o mundo, tendo como passaporte os livros e uma fome imensa de leitura.
Nessa viagem, sentei-me ao lado de ilustres passageiros que me convidaram a experimentar a inusitada arte de escrever. O convite foi aceito, mas por onde começar? Logo encontrei a resposta: nada melhor que por meio da linguagem. Então iniciei um vasto trabalho de pesquisa investigativa sobre o processo de construção de linguagem ao longo de sua evolução. Este trabalho deu origem à minha monografia, realizada no curso de pós-graduação, que por fim originou o meu primeiro livro intitulado “A Linguagem Pictográfica nas Cavernas do Vale do Peruaçu” que evidencia relatar como essas pinturas, enquanto forma de linguagem, influenciaram na expressão comunicativa dos homens da pré-história, além de buscar compreender o processo pelo qual a linguagem se desenvolveu ao longo dos anos.
Foram tantos diálogos que alimentaram o meu espírito, muito além do que esperava e imaginava. Foram momentos incríveis que em mim despertaram bastante entusiasmo. A partir de então, sentei-me no banco da praça, abri a mala e retirei no fundo escondidinho meu velho sonho de infância e senti uma força e uma vontade intensa de praticar diálogos. Latejava em mim o desejo ansioso de falar. Mas não havia ninguém, a praça estava vazia, não encontrei ouvintes. Então, só me restava escrever.
Travei um intenso diálogo com a vida: os diálogos emanavam, não estavam presos, era minha necessidade de compartilhar. A viagem havia me presenteado com sonhos que se misturavam à realidade. Foi nesse momento que dei início ao projeto do meu segundo livro “Histórias Infantis e Formação de Leitores”, que busca compreender a influência e o valor das histórias infantis e sua relação com a formação de leitores. O livro também é um convite a meus leitores a beber na fonte da antiguidade clássica e desfrutar riquezas no universo da literatura.
Ler é um ato de amor, de envolvimento, de magia, de prazer e transformar tudo isso em ato mecânico, controlador, punitivo, pouco agradável e consequentemente pouco frutífero tem sido a prática de muitos educadores que têm a missão de formar leitores competentes e reflexivos. Isso me faz lembrar daquela professora que tive... Acho que não é difícil encontrar outras tantas iguais a ela por este vasto Brasil. Por meio dessa experiência negativa, tenho plena convicção de que é preciso discutir e rever as estratégias de leituras, especialmente nas séries iniciais, pois é nessa fase que a criança vai estabelecer interações afetivas e efetivas com a leitura e, a partir daí, tornar-se leitora para toda a vida, mas, se o processo ocorrer de forma contrária, a criança irá desenvolver resistência e horror à leitura.
Na plataforma da estação estavam meus alunos. A viagem agora necessita de se realizar em mão dupla. Como educadora, percebi que tinha um grande desafio: fazer com que eles também sentissem vontade de se alimentar de leituras. Só me restava uma coisa: partilhar o amor, as alegrias, as emoções para que juntos pudéssemos arquitetar formas possíveis, traçar percursos com fios de esperança, de sonhos, de compreensão, de fé e de transformação.
Foi dada a partida e, na solidão em que se impõe o conformismo, nascia a teia da vida: o fio era o rio, fios rubros, fios fortes, nascia então o livro “Nas Margens do Rio e do Papel”. Este livro registra emoções, sentimentos, vivências nas mais variadas formas de expressão e legitimidade de jovens e adolescentes que tiveram a oportunidade de viver e experimentar múltiplos diálogos com a vida e com a literatura por meio da leitura.
Foi um trabalho árduo, mas compensativo, o de possibilitar aos educandos uma melhor compreensão do mundo em que vivem e, consequentemente, refletir sobre suas condições de cidadão. Sabe-se que a capacidade de leitura, reflexão, domínio da linguagem e a apropriação da escrita são condições básicas para o pleno exercício da cidadania.
No mundo em que vivemos ainda é possível deslumbrar-nos com as histórias que encantam e nos contagiam, com as fantasias que às vezes se tornam realidade e quando vivenciadas tornam-se respostas a muitos mistérios, que cada um poderá interpretar de acordo com os seus anseios.
Entre uma aula e outra, um livro e outro, dos nós e entrenós que formam a vida, das experiências vividas, continuava viva e latente a vontade de escrever. Sentia as dores do parto, estava pronto para nascer meu novo livro - “Interlúdio” - que foi gerado com muita dor, suor e lágrimas nos pequenos intervalos de minha vida, entre corrigir uma prova, participar de uma reunião, preencher um diário.
Este livro, de caráter ficcional, marca uma nova etapa em minha vida em conseqüência de minhas experiências enquanto leitora. Foi gerado no momento que eu estava buscando compreender certas passagens que me levassem para além de mim. Por essa razão, a narrativa do livro contempla a possibilidade de o homem transitar entre o passado e o presente, colher no passado os fragmentos para construir o momento presente através do olhar perceptível da vida. Tudo se constrói a partir da leitura dos fatos pela memória, num jogo simbólico em que a realidade objetiva passa a ser produto da realidade subjetiva revelando aspectos de vidas em épocas passadas.
Definir-me como leitora no mundo de hoje é muito fácil. Ultimamente, tenho lido muito, de tudo um pouco. Leio na velocidade do tempo. Leio por obrigação, leio por puro prazer. Leio o mundo. Leio as pessoas. Leio criticamente, tenho buscado começo, meio e fim, finalidades para a existência tão simples e complexa ao mesmo tempo. Para escrever este Memorial, tive que ler a minha alma, recolher lembranças, medos e palavras que se misturam no livro dos meus dias, mas que me fazem nascer de novo a cada dia, a cada minuto. Tenho sede de tudo que me cerca. Tenho fome de olhar, tenho fome de falar... Quero continuar a ler e a escrever. E com minha câmara fechada no silêncio vou des(colorindo), color(indo), re(velando) contornos em minha vida. Quero o vício do vício de ler e escrever, quero multiviver, ler e reler.
Caminhos, flores, espinhos, via, vida, sombra, alma faminta de leitura, o viajar é contínuo, renovando o prazer de aprender, fazendo da leitura um hábito diário, enriquecendo o pensar, o sentir, divisando além das sombras que passam. Ainda há muito o que desvendar, ainda há muito o que ler.
Edinília Nascimento Cruz – Gestar II